Jabuticabas Brasileiras

20 de setembro, 2019

Por Ilan Ryfer

O Brasil é o país conhecido, entre outras coisas, pelas suas jabuticabas, coisas que só existem aqui (ou, no mínimo, são muito mais comuns aqui que em outros países). O mercado financeiro brasileiro não poderia ser diferente e é recheado de jabuticabas. A analogia é sobre processos que nós desenvolvemos para suprir deficiências e idiossincrasias da nossa economia, esta que trabalhou por anos num ambiente disfuncional de alta inflação. Nos acostumamos a falar de rentabilidade como percentual de CDI, a cota diária, a resgates de investimentos em prazos curtíssimos, a investir prioritariamente em renda fixa pós-fixada, a priorizar aspectos de isenção tributária em detrimento de análise de investimentos, a fazer empréstimos para credores notoriamente piores por conta da garantia do FGC (Fundo Garantidor de Crédito).

Talvez a maior jabuticaba do mercado financeiro brasileiro seja a análise de rentabilidade da maior parte dos ativos como percentual de CDI. Em nenhum lugar do mundo (ou quase nenhum; assumo que não conheço todos os mercados globais) a linguagem é essa, até porque não faz o menor sentido econômico. Em todos (ou quase todos) os mercados globais a linguagem para medir rentabilidade é de Taxa de Juros Base + Spread. Algo como Libor + Spread ou Treasury + Spread. Isso porque o spread, ou o quanto se paga acima da taxa de juros base, é a medida padrão para quanto de rentabilidade temos em função do risco assumido. Usar a linguagem de percentual da taxa de juros base seria o mesmo que dizer que spread varia de acordo com a taxa de juros. Traduzindo: num ambiente de juros mais alto, demandamos um spread maior para os mesmos investimentos (o contrário ocorrendo em ambiente de juros mais baixos).

Numericamente, podemos pensar no Brasil pré-histórico, de Selic em 14,25%, algo que ocorreu em 2016. Nesse nível, um investimento de 120% de CDI renderia 17,1%, ou CDI + 2,85%. Avançando no tempo, imagine que a Selic caiu para 6%. Esse mesmo investimento, de 120% de CDI, renderia 7,2%, ou CDI + 1,20%. Dá até para argumentar que um ambiente de juros mais alto demanda um prêmio de risco maior para todos os ativos. Nesse caso, seriamos o único país no mundo que aplica esse conceito de forma correta. Só que o mundo todo e todos os modelos de precificação de ativos são baseados num prêmio de risco constante para cada ativo em relação ao nível de juros. Com a Selic baixa por muito tempo, talvez a gente finalmente caminhe na direção do resto do mundo.

O Brasil também é viciado em cota e resgate diário. Isso também é herança da época de hiperinflação, quando ainda se falava de “overnight”. Lembro de uma conversa que tive uma vez com um incorporador imobiliário. Ele lembrava que nos anos 80, quando vendia um apartamento à vista perguntava se o comprador iria pagar de manhã ou de tarde. Por quê? Porque se pagasse de manhã dava tempo de investir no “overnight” e o preço era outro. Só que existe um custo grande para a indústria de fundos o vício em cota e resgate diário. O primeiro custo vem dos administradores de fundos, que cobram pelo trabalho de calcular todos os dias uma cota nova. O segundo custo vem das restrições que o resgate diário causa na gestão de portfólio, que muitas vezes foca em liquidez e curto prazo em detrimento de retornos de longo prazo. Felizmente a indústria de fundos brasileira vem amadurecendo nos últimos 10 anos e oferecendo cada vez mais opções de investimentos sem resgates diários, focados no longo prazo.

Outra jabuticaba vem das isenções tributárias. Todos os países do mundo têm algum tipo de isenção tributária em alguns tipos de investimentos, mas nenhum se compara ao Brasil. Temos isenções nos CRIs, CRAs, LCIs, LCAs, Debentures de Infra-Estrutura, Fundos de Investimentos Imobiliários, entre outros, fora várias postergações tributárias, em investimentos em fundos fechados, em ações, em investimentos no exterior, em previdência. Não que eu esteja julgando o mérito de cada uma dessas isenções ou postergações tributárias. O ponto é que o mercado acaba se focando mais na isenção, pois causa maior impacto em rentabilidade, do que no ativo em si. E, dada a criatividade do mercado financeiro, muitas vezes algo que foi criado para um fim acaba sendo alterado para uma finalidade totalmente diferente. Um exemplo são os CRAs, criados originalmente para fomentar a produção agrícola. Em 2016, a CVM aprovou a emissão de CRA cujo devedor era o Burguer King. Afinal de contas, hamburgueres são feitos de carne, e isso é fomentar a pecuária brasileira! Os maiores problemas das isenções tributárias são que, como todo subsídios, (1) custam em arrecadação para o governo e (2) distorcem o mercado.

Para terminar a lista de jabuticabas (não que não existam outras), temos os CDBs garantidos pelo FGC. Para quem não sabe, o FGC é o Fundo Garantidor de Crédito, criado para funcionar como uma seguradora dos depósitos em conta corrente nos bancos até o valor de R$250.000 por CPF por instituição financeira. Só que essa garantia foi estendida para LCIs, LCAs, CDBs e Poupança dessas instituições. Na prática, isso significava que investimentos nesses ativos estavam garantidos contra a quebra da instituição financeira até o limite de R$250.000. Se você sabe que independente do risco do credor, o governo te garante receber o principal mais juros até o limite de R$250.000, o que você faz? Procura as instituições financeiras de pior qualidade de crédito, que pagam taxas mais gordas, e investe no limite da garantia. E muitos investidores fizeram exatamente isso por anos. Em 21/12/2017, a regra mudou um pouco, colocando um teto global de R$1.000.000 por períodos de 4 anos. Foi um aprimoramento da regra para reduzir abusos, mas, na prática, pouco alterou a matemática do investimento.

Mas todas essas idiossincrasias do nosso mercado podem ter tempo contado. Caso a taxa de juros brasileira permaneça num patamar baixo por um período de tempo prolongado, naturalmente o mercado terá de se ajustar, adotando a linguagem universal de CDI + Spread, reduzindo as alocações em renda fixa e aumentando a alocação em ativos de risco, priorizando investimentos de mais longo prazo. Os custos do setor financeiro também têm de ser ajustados para uma realidade de juros e rentabilidades mais baixas. Talvez em alguns anos não existam mais jabuticabeiras no mercado brasileiro. Resta aguardar.